As caixas vazias estão se acumulando no chão enquanto Halyna organiza seu kit médico, tirando pacotes de comprimidos e descartando qualquer embalagem desnecessária. Ela não pode desperdiçar espaço. Está fugindo, e a jornada à frente é longa e arriscada.
Halyna, de 59 anos, e seu marido Olexey, 61, são de Selydove, uma cidade ao sul de Pokrovsk, próxima ao atual epicentro da guerra no leste da Ucrânia. Eles adiaram a partida o máximo que puderam, permanecendo mesmo após todos os seus amigos terem saído, na esperança de que as coisas melhorassem. Mas, há alguns dias, tudo mudou.
“O bombardeio estava em toda parte ao nosso redor, a noite toda. Nossa casa ainda está intacta, mas não ficará por muito tempo. Todo o resto foi danificado”, disse Halyna à CNN. “Nossos soldados vieram e nos tiraram de lá”, acrescentou.
Enfermeira e mineiro, o casal está entre as dezenas de milhares de ucranianos que estão fugindo de Pokrovsk e das cidades vizinhas, à medida que se torna cada vez mais provável que a cidade se torne o próximo campo de batalha crucial da guerra na Ucrânia.
Forças russas têm avançado lentamente em direção à cidade há semanas, mas a situação se tornou crítica nos últimos dias. Moscou tem se empenhado em capturar Pokrovsk, mesmo enfrentando dificuldades para conter a incursão ucraniana na região da fronteira de Kursk.
Pokrovsk é um alvo estratégico para Moscou. O presidente russo Vladimir Putin deixou claro que seu objetivo é conquistar todas as áreas das regiões Donetsk e Luhansk, no leste da Ucrânia. Pokrovsk está localizada em uma importante rota de abastecimento que a conecta a outros centros militares e forma a espinha dorsal das defesas ucranianas na parte da região de Donetsk que ainda está sob controle de Kiev.
A linha de frente está agora tão próxima que é possível ouvir os combates no centro da cidade. Os sons profundos e inconfundíveis de explosões podem ser ouvidos vindo dos subúrbios. De vez em quando, há o zumbido dos contra-ataques ucranianos, disparados de mais longe, sobrevoando a cidade na tentativa de atingir as posições russas ao leste.
Serhiy Dobryak, chefe da administração militar-civil de Pokrovsk, tem trabalhado sem parar nos últimos dias, tentando desesperadamente convencer as pessoas a saírem antes que se torne muito perigoso ou até impossível fazê-lo.
“A maioria das pessoas sai voluntariamente, algumas temos que persuadir. Começamos a evacuação obrigatória para famílias com crianças esta semana”, disse ele, acrescentando que cerca de mil pessoas estão saindo todos os dias.
Mas fugir não é fácil – mesmo para quem pode pagar. Arina, de 31 anos, quer desesperadamente deixar Pokrovsk. Ela e seu marido trabalhavam como dentistas em Selydove, que agora é muito perigosa para ir. Eles estão tendo dificuldades para encontrar um lugar para morar. O problema parece ser seu filho David, uma criança de colo.
“Começamos a arrumar as malas uma semana antes de declararem a retirada obrigatória e estamos procurando um apartamento, mas ninguém quer alugar um apartamento para pessoas com filhos, para refugiados”, disse ela à CNN.
“Parece que as crianças são consideradas animais, especialmente se tiverem menos de três anos. Os proprietários só aceitam crianças mais velhas, com seis ou sete anos, ou oferecem apartamentos horríveis por qualquer preço que queiram”, disse ela, sentada em um balanço em um playground deserto em Pokrovsk.
David estava brincando na caixa de areia, alheio ao que estava acontecendo ao seu redor. Ele largou as sandálias e corria descalço, parecendo radiante por ter todos os brinquedos só para si.
Arina o levou ao playground para protegê-lo do caos em casa, fingindo que tudo estava como deveria ser. Em um sábado ensolarado de verão, o playground normalmente estaria repleto de famílias com crianças. Mas nada é normal em Pokrovsk agora.
David tem quase 3 anos, nascido poucos meses antes do início da invasão em grande escala. Ele só conhece a guerra.
“Ele só começou a reagir às explosões há dois meses. Digo a ele que são fogos de artifício, não quero contar o que está acontecendo. Mas escrevi ‘Há uma guerra’ no álbum de bebê dele”, disse ela, com os olhos cheios de lágrimas. Arina rapidamente as enxugou, não querendo que David a visse chorar. As pessoas têm que continuar vivendo, disse ela.
Como para muitos outros na área, a guerra não começou há dois anos e meio para Arina. Ela estava na escola de medicina em Donetsk em 2014, quando a Rússia anexou à força a Crimeia e separatistas apoiados pela Rússia tomaram grandes áreas das regiões de Donetsk e Luhansk. Cerca de 2 milhões de pessoas, incluindo Arina, foram forçadas a deixar suas casas.
“Você se acostuma (a fugir). E é horrível que você possa se acostumar com algo assim. Você tem que se adaptar a uma nova realidade o tempo todo. Primeiro você cai em depressão e pânico. Tenta começar uma vida em um novo lugar. Você vive e vive e então acorda às cinco da manhã com mísseis e foguetes voando sobre sua cabeça”, disse ela.
O policial da região de Donetsk, Pavlo Dyachenko, passou as últimas semanas coordenando evacuações de Pokrovsk e outras cidades da área.
Ele disse que seu principal problema é que, para muitas pessoas, ainda não parece tão ruim. Comparado com imagens de outras cidades sob ataque, Pokrovsk ainda está relativamente calma. As pessoas aqui têm uma rotina. Elas saem de manhã, fazem compras e cuidam de seus afazeres. No meio da tarde, as ruas ficam desertas. Todos aqui sabem que os drones provavelmente atacarão mais tarde no dia.
A maioria dos grandes supermercados e lojas já fechou, mas os pequenos negócios continuam abertos – incluindo um pequeno restaurante popular entre os moradores, de propriedade de Yulia, 34 anos. Ela e sua família – o marido e uma filha – estão todos prontos para partir. Eles fecharam seu outro restaurante em Pokrovsk, mas mantiveram o do centro da cidade aberto.
“Continuamos trabalhando. Trabalhamos, temos clientes, nossos funcionários moram aqui, então vamos ficar por algum tempo, claro que não ficaremos até o final. Não vamos esperar pelo bombardeio horrível. Mas por enquanto, é possível”, disse ela à CNN.
Mas isso não é o que Dyachenko quer ouvir.
“Explicamos às pessoas que a situação pode mudar muito rapidamente. Tento contar histórias pessoais de pessoas que tivemos que retirar depois que ficaram presas em Bakhmut ou Avdiivka”, disse Dyachenko à CNN. “Em Selydove, parecia absolutamente tranquilo um dia e então as bombas planadoras começaram a cair”, disse ele.
Dyachenko disse à CNN que seus homens não irão arrastar ninguém à força. Mas a operação fica mais arriscada a cada dia. Sair de Pokrovsk é fácil, as pessoas podem simplesmente dirigir ou pegar um trem de evacuação. Mas a poucos quilômetros adiante, aqueles que hesitaram em sair agora estão sendo resgatados pela polícia em veículos blindados, às vezes sob fogo.
“Fica cada vez mais perigoso”, acrescentou Dyachenko.
Dobryak, o chefe da administração militar-civil de Pokrovsk, disse que a experiência anterior na região sugere que cerca de 10% das pessoas tendem a ficar, não importa o que aconteça, então a cidade continuará fornecendo serviços essenciais pelo maior tempo possível. Mas, dado o rápido avanço das forças nos últimos dias, parece mais do que provável que os combates piorem e possam atingir o coração da cidade em breve.
Um oficial de uma das brigadas ucranianas que lutam na área disse que eles foram superados em número e em armamento pelas tropas russas, algumas das quais são da autoproclamada República Popular de Donetsk e conhecem bem a área. Mas há outros problemas também. O oficial disse que a comunicação entre as diferentes brigadas não tem sido ideal e que a maioria das defesas construídas na área não foi eficaz.
Dobryak disse que as administrações da cidade e da região foram orientadas pelos militares sobre onde e como construir defesas e fortificações – um processo que começou quando Moscou lançou a invasão em grande escala em fevereiro de 2022. Ele disse que espera que as defesas de Pokrovsk possam resistir ao ataque – mas sabe que é uma tarefa difícil.
“Qualquer fortificação que tenhamos, eles têm dez vezes mais homens e veículos. O mesmo acontece com os projéteis de artilharia. Perdemos o impulso no inverno, quando não estávamos recebendo o pacote de ajuda (dos EUA). Mas nossos homens heroicos lutam com o que têm”, disse ele.
Refugiados não são bem-vindos?
Entre as centenas de pessoas ansiosas que lotavam a estação de trem da cidade na tarde de sábado (24), algumas poucas pareciam querer partir. Muitas estavam visivelmente exaustas e de coração partido, sendo Pokrovsk o único lar que já conheceram.
Enquanto o trem se preparava para sair, muitos estavam chorando, acenando um último adeus para os entes queridos que ficaram para trás.
“Todos os dias, todas as noites, explosões. Foi crescendo lentamente, mas ficando mais alto e mais alto a cada dia”, disse Oksana, de 37 anos, à CNN enquanto esperava na plataforma. Ela parecia nervosa, mantendo um olho em suas duas filhas e o outro em sua mãe, Liubov.
O marido de Oksana, Oleh, de 34 anos, ia viajar com elas no trem, garantindo que estivessem seguras. Mas ele voltaria direto para casa depois. Como mineiro, ele precisa continuar trabalhando – o dinheiro está escasso e ele não pode se dar ao luxo de deixar o emprego.
“Eu irei se a mina fechar e nos mandarem ir embora”, disse ele.
A família hesitava em deixar Pokrovsk porque Liubov, de 70 anos, sofreu um derrame recentemente e agora não consegue falar ou andar. Quando três policiais, usando coletes à prova de bala e capacetes, a carregaram para dentro do trem, ela parecia completamente estoica, seu rosto não demonstrando nenhuma emoção.
“Ficou perigoso demais aqui. As autoridades e a escola das meninas estavam nos convencendo a ir embora, a maioria dos nossos amigos também está indo”, disse Oksana, acrescentando que, no fim, ela queria que suas filhas – Hanna, de 14 anos, e Dasha, de 9 – estivessem estabelecidas em um novo lugar antes de voltarem para a escola em uma semana.
Como a maioria das crianças na região, as duas têm assistido às aulas online durante a guerra. A educação presencial é perigosa demais por aqui. No início deste mês, uma escola em Pokrovsk que havia sido transformada em abrigo foi atingida por dois foguetes russos. Agora, está em ruínas.
Dasha está prestes a começar a quarta série e, entre a guerra e a pandemia de Covid antes disso, ela nunca teve uma experiência escolar normal. No entanto, seus desejos são iguais aos de qualquer jovem em qualquer lugar.
“Quando tivermos nossa própria casa, vamos ter um cachorro e um gato”, disse ela, referindo-se à promessa que seus pais fizeram para depois da guerra. O cachorro será um poodle, disse Dasha. “O nome dependerá da cor”, acrescentou.
Mas mesmo com a linha de frente se aproximando cada vez mais, alguns ainda não estão convencidos de que irão embora. Muitos não têm para onde ir; alguns se sentem indesejados no resto da Ucrânia.
Em um açougue perto da estação de trem de Pokrovsk, Oksana, a comerciante, diz que não acha que conseguiria partir. “Tenho dois cachorros e estou alimentando todos os cachorros daqui, tenho meu trabalho, minha mãe que tem mais de 80 anos e mal consegue andar, não posso sair”, disse ela à CNN.
“Claro que as autoridades estão nos pedindo para sair, mas para onde podemos ir? Não temos amigos ou familiares com quem possamos ficar, e ninguém quer alugar um apartamento para pessoas com animais”, ela disse.
Oksana, de 47 anos, e várias outras mulheres na loja disseram que se sentem abandonadas. Donbass, a área que abrange as regiões de Donetsk e Luhansk, sempre foi culturalmente diferente do resto do país, sua economia movida pela mineração e pela indústria pesada. Florescendo antes dos eventos de 2014, a região sofreu um impacto quando a guerra começou.
Muitos ucranianos culparam as pessoas na região de Donbass pela guerra – especialmente porque alguns moradores locais inicialmente receberam os separatistas pró-russos com alegria.
“Nós só estávamos unidos quando era Kiev. Kiev está chorando – o país inteiro está chorando. Quando Donbass está sendo bombardeada, e nós estamos sendo bombardeados há muito tempo, não há nenhuma palavra sobre uma Ucrânia unida”, ela disse.
Como a maioria das pessoas em Donbass, Oksana fala russo – outra coisa que a diferencia dos ucranianos ocidentais.
“Eles dizem que é a língua de Putin. Eu sou ucraniana e falo russo, é a minha língua e eu a falo, embora eu também entenda ucraniano”, disse Oksana, acrescentando que não consegue imaginar deixar Pokrovsk, seu lar há 25 anos.
Sentados em um banco cercados por malas e bagagens, Halyna e Olexey disseram que não tinham escolha. Não sair não era uma opção.
“Não há energia, não há água, o gás foi desligado há muito tempo. Houve explosões em todos os lugares, tudo foi destruído”, disse Olexey, enquanto esperava um carro para buscá-los.
Eles estão determinados a voltar. Estão indo para a Itália para se juntar à filha, que mora lá desde 2022. Eles não veem a neta há mais de dois anos e temem que ela não os entenda, pois agora frequenta uma escola italiana. Halyna disse que está ansiosa para ver sua filha e neta novamente, é claro, mas é categoricamente contra viver na Itália para sempre.
“Eu não quero viver na Itália. Eu quero viver no país em que nasci. Quero viver aqui, na minha casa, na Ucrânia”, disse Halyna. “Eu não sei italiano, não sei inglês, quando chegarmos lá, não vou conseguir ir a lugar nenhum sem a minha filha. Eu não quero isso”, acrescentou Olexey.
Na manhã seguinte, apenas 24 horas após fugir de casa, Olexey e Halyna estavam perdidos em Dnipro. Acostumados à vida em uma cidade pequena, o casal tentava navegar pela cidade grande, procurando um caixa eletrônico.
Eles estavam lutando para aceitar sua nova realidade. Agora, eles são refugiados.